domingo, junho 28, 2009

NÃO TE DEIXAREI MORRER PETER PAN

Michael Jackson viveu refém da criança que nos anos 60 se tornou uma estrela

Por cada vez que Michael Jackson ouviu chamar-lhe "Rei da Pop", alguém nas suas costas gritou "Wacko Jacko". Era um termo que muitos achavam apropriado às suas excentricidades: as roupas, a mudança de cor de pele, as luvas, as meias brancas, as danças esquisitas e, acima de tudo, o rancho, as crianças em volta, etc.

Em entrevistas Jackson manifestava a sua dor com o termo, o seu espanto com a crueldade do termo, aprestando-se depois a perdoar quem assim lhe chamava.

O que causava impressão não era Jackson ficar ofendido com o que na prática era um insulto, mas sim a sua incredulidade: ele parecia não acreditar que seres humanos adultos pudessem conscientemente magoar outros seres humanos. Ele parecia não acreditar que mesmo sendo o maior ícone pop não estava a salvo do desprezo do homem comum. Parecia não acreditar que apesar de ser o maior ícone pop do mundo não era aceite.

Jackson revelou sempre uma total incapacidade de se distanciar dos comentários de anónimos, a incapacidade de desenvolver uma carapaça adulta. Como uma criança acossada pelos empurrões injustos dos colegas de recreio, queixava-se dos meninos maus sem perceber que essa era a regra do jogo: quem se põe a jeito leva.

Faz sentido compará-lo com uma criança - e ele certamente gostaria disso. Jackson tinha uma obsessão com uma ideia de pureza infantil, o que o levava não raras vezes a comportar-se como uma espécie de Cristo redentor cuja boa nova era o regresso da inocência.

Essa sua obsessão pessoal com a infância alastrou tanto para a sua vida pessoal como para o seu imaginário criativo: compare-se as imagens de Jackson no rancho Neverland ou no palco - não parece haver barreira entre os dois universos, e em ambos os casos temos fantasias infantis em que Jackson desempenha o papel de salvador imbuído de uma pancaridade. Essa sua obsessão pessoal ignorava que as crianças, mesmo as mais bem formadas, são muitas vezes cruéis e impiedosas.

Uma das mais impressionantes provas da regressão infantil de Jackson, a que o mundo chamou "complexo de Peter Pan", está nesse lugar infantil a que regredia quando tinha de responder a uma pergunta de um jornalista. No desespero com que se esforçava por demonstrar que a sua vida era regida apenas por bons sentimentos, na sua voz impossivelmente doce.

No final da década de 90, Barbara Walters inquiriu-o acerca desse "Wacko Jacko". Como sempre ele confessou a sua mágoa, para depois afirmar que tinha receio que chamassem ao filho "Wacko Jacko's son". O que se segue é um sinal da imaturidade de Jackson e do seu alheamento do real.

Barbara Walters: Como é que vai evitar que lhe chamem [Wacko Jacko's son]?

Michael: Pois, isso... É essa a ideia. Talvez a Barbara possa arranjar um plano para me ajudar.

Barbara: Você é que é o pai.

A resposta de Walters é quase cruel, mas compreensível, visto não haver qualquer ironia na resposta de Jackson. A imagem que Jackson passa é a de alguém que não tomou consciência de ser o responsável pela criança. Quando pensamos na imagem de Jackson segurando o filho ainda bebé pelos braços na varanda de um hotel de Berlim, exibindo-o perigosamente para os fãs, como uma criança a mostrar um brinquedo novo aos coleguinhas, é difícil não pensar que aquele homem não estava preparado para ser pai. Na realidade, talvez ele não estivesse sequer preparado para ser pai de si próprio.


Vida de adulto?

A vida de adulto de Jackson não foi propriamente uma vida de adulto: sim, casou, teve filhos, tinha obrigações profissionais.

O seu pathos foi o de um homem empenhado em melhorar uma ideia de infância e depois habitá-la. Digamos que Jackson foi perseguido pelo fantasma do seu estrelato infantil e recusou-se a abandonar esse reino.


Olhem para as imagens dos Jackson 5 que encontrarem no YouTube. Ele é irresistível: minúsculo, com boa voz, possuído por uma naturalidade rara - só podia encantar. As actuações, as fotos, projectam um universo de perfeição imaculada, de pureza solar, de intensa alegria: calças amarelas e vermelhas, camisas às flores, criança precoce de passos de dança herdados de James Brown.

É aqui que nasce o complexo de Peter Pan de Jackson: na distância entre esse mundo imaginário (esse construído) e o real.


Jackson não foi, na prática, uma criança: com cinco anos de idade era obrigado pelo pai a subir aos palcos à força de muita pancada. O pai violentou-o desde cedo, escravizou-o, ao ponto de Jackson nunca ter brincado com crianças no pátio, ou, como disse em 93 a Oprah, nunca ter tido festas de pijama.

Essa (dolorosa) entrevista não só é reveladora da tragédia que Jackson sofreu, como também demonstra o grau de "desligamento" com que o Rei da pop via a idade adulta. Referindo-se à sua infância (nove, dez anos), Jackson dizia: "Ia gravar e via as crianças a brincar no parque e chorava porque tinha de gravar dez horas por dia." Jackson revela que era alvo das agressões do pai, revela que este pai o gozava por ter acne e lhe dizia que era feio. Jackson revela ainda que já adulto e durante anos vomitava de cada vez que via o pai. E a cada revelação pede desculpa ao pai.

Nessa tremenda entrevista ele revela ainda que se identifica com o Homem-Elefante, e diz: "Adoro fazer coisas pelas crianças e imitar Jesus."

Na altura em que conversou com Oprah estava há 14 anos sem dar uma entrevista à televisão. Em 1982, na primeira entrevista que deu sem acompanhamento da família, disse ao repórter: "Se eu falo, digo o que está na minha cabeça e isso soa estranho ao ouvido das pessoas, porque eu digo tudo." O seu posterior silêncio soa a paranóia, a medo do confronto com o mundo dos adultos, em que as acções têm de ser justificadas.

1982 foi o ano em que lançou Thriller. Foi o ano em que realizou a primeira operação plástica, uma redução do nariz, e em que cortou a carapinha, numa espécie de primeiro processo de "branqueamento" do rosto. Esse caminho em direcção a uma pele, um queixo, um nariz, uma fácies branca é curioso, porque Jackson surgiu numa época em que, na música (e na Motown, a sua editora), os negros tentavam desesperadamente ser aceites pelos brancos. Pormenor: nessa entrevista de 1982 Jackson revelou a sua tristeza por o primeiro disco, Off The Wall, só lhe ter valido um Grammy, e na categoria R&B (em vez de pop).

Foi igualmente nessa altura que Jackson ganhou o hábito de, aos domingos, dançar em jejum até desfalecer. Foi igualmente nesse ano que despediu o pai da função de manager. Também nesse ano aproveitou e vendeu a mansão da família. Foi viver com a irmã Jackson para um subúrbio de LA. No jardim tinham algumas estátuas. A preferida de Jackson era uma representação de Narciso. Michael chamou à estátua Michael. Talvez tenha começado aí o seu crescendo de desequilíbrio, à medida que a sua popularidade tomou proporções nunca vistas. A fama, disse, deixava-o "triste e só". A Barbara Walters confessou que por não poder ir a um parque de diversões em paz, sem ser seguido, trouxe um para dentro de casa. Começou aí a executar um movimento de fechamento. De certo modo ficou apenas com o seu universo musical e visual. O que faz sentido, se pensarmos que nunca foi à escola (teve tutores desde cedo) e que mesmo antes de saber ler já subia aos palcos. Faz sentido, se pensarmos que nunca aprendeu a sociabilizar - mesmo entre os irmãos desde cedo era a estrela. O entertainment foi o único universo que conheceu: cantar, dançar, ser olhado e admirado. Veja-se o resultado, mais de 30 anos depois, na prestação nos Brit Awards em 1996: Jackson encena-se como Cristo, rodeado de crianças. No fim, sobe aos céus.

O que há de interessante (em termos de leitura) nessa infância perdida está no facto de toda a alegria dessa época derivar de encenação - dos concertos, das aparições na TV, etc. Quando o vemos no vídeo de Black or White rodeado de leões, russos a dançar, indianas, índios e cowboys, etc., é como se ele estivesse apenas a ampliar o universo de fantasia. Como se estivesse inundado de infância e de omnipotência, em contraste com a sua vida pessoal.

Jackson tornou-se uma espécie de presa do seu próprio imaginário, um Cristo de fantasia que sacrificou a sua sanidade mental em favor de um mundo onírico, protopuro, regressivo.


Um dia disse: "No meu coração serei sempre Peter Pan."

texto: João Bonifácio (Jornal O Público)

3 comentários:

J disse...

A inocência só morre quando deixamos. Nem um exército de homens ma arrancará: Eu morrerei inocente...sei no meu coração!

Assim como tu MJ

Mesmo que a criança que ainda existe nalguns de nós se encontre assustada e agachada num canto do nosso coração! Mesmo que ninguém acredite em nós.

J disse...

Love will prevail!

RIP Miky

Mary disse...

Olá,
Achei muito interessante o teu blog,que descobri por acaso,mas que gostei e ja´adicionei oas favoritos.:) já agora faço-te o convite para visitares meu cantinho.


bjs