Por cada vez que Michael Jackson ouviu chamar-lhe "Rei da Pop", alguém nas suas costas gritou "Wacko Jacko". Era um termo que muitos achavam apropriado às suas excentricidades: as roupas, a mudança de cor de pele, as luvas, as meias brancas, as danças esquisitas e, acima de tudo, o rancho, as crianças em volta, etc.
Em entrevistas Jackson manifestava a sua dor com o termo, o seu espanto com a crueldade do termo, aprestando-se depois a perdoar quem assim lhe chamava.
O que causava impressão não era Jackson ficar ofendido com o que na prática era um insulto, mas sim a sua incredulidade: ele parecia não acreditar que seres humanos adultos pudessem conscientemente magoar outros seres humanos. Ele parecia não acreditar que mesmo sendo o maior ícone pop não estava a salvo do desprezo do homem comum. Parecia não acreditar que apesar de ser o maior ícone pop do mundo não era aceite.
Jackson revelou sempre uma total incapacidade de se distanciar dos comentários de anónimos, a incapacidade de desenvolver uma carapaça adulta. Como uma criança acossada pelos empurrões injustos dos colegas de recreio, queixava-se dos meninos maus sem perceber que essa era a regra do jogo: quem se põe a jeito leva.
Faz sentido compará-lo com uma criança - e ele certamente gostaria disso. Jackson tinha uma obsessão com uma ideia de pureza infantil, o que o levava não raras vezes a comportar-se como uma espécie de Cristo redentor cuja boa nova era o regresso da inocência.
Essa sua obsessão pessoal com a infância alastrou tanto para a sua vida pessoal como para o seu imaginário criativo: compare-se as imagens de Jackson no rancho Neverland ou no palco - não parece haver barreira entre os dois universos, e em ambos os casos temos fantasias infantis em que Jackson desempenha o papel de salvador imbuído de uma pancaridade. Essa sua obsessão pessoal ignorava que as crianças, mesmo as mais bem formadas, são muitas vezes cruéis e impiedosas.
Uma das mais impressionantes provas da regressão infantil de Jackson, a que o mundo chamou "complexo de Peter Pan", está nesse lugar infantil a que regredia quando tinha de responder a uma pergunta de um jornalista. No desespero com que se esforçava por demonstrar que a sua vida era regida apenas por bons sentimentos, na sua voz impossivelmente doce.
No final da década de 90, Barbara Walters inquiriu-o acerca desse "Wacko Jacko". Como sempre ele confessou a sua mágoa, para depois afirmar que tinha receio que chamassem ao filho "Wacko Jacko's son". O que se segue é um sinal da imaturidade de Jackson e do seu alheamento do real.
Barbara Walters: Como é que vai evitar que lhe chamem [Wacko Jacko's son]?
Michael: Pois, isso... É essa a ideia. Talvez a Barbara possa arranjar um plano para me ajudar.
Barbara: Você é que é o pai.
A resposta de Walters é quase cruel, mas compreensível, visto não haver qualquer ironia na resposta de Jackson. A imagem que Jackson passa é a de alguém que não tomou consciência de ser o responsável pela criança. Quando pensamos na imagem de Jackson segurando o filho ainda bebé pelos braços na varanda de um hotel de Berlim, exibindo-o perigosamente para os fãs, como uma criança a mostrar um brinquedo novo aos coleguinhas, é difícil não pensar que aquele homem não estava preparado para ser pai. Na realidade, talvez ele não estivesse sequer preparado para ser pai de si próprio.
Vida de adulto?
A vida de adulto de Jackson não foi propriamente uma vida de adulto: sim, casou, teve filhos, tinha obrigações profissionais.
O seu pathos foi o de um homem empenhado em melhorar uma ideia de infância e depois habitá-la. Digamos que Jackson foi perseguido pelo fantasma do seu estrelato infantil e recusou-se a abandonar esse reino.
Olhem para as imagens dos Jackson 5 que encontrarem no YouTube. Ele é irresistível: minúsculo, com boa voz, possuído por uma naturalidade rara - só podia encantar. As actuações, as fotos, projectam um universo de perfeição imaculada, de pureza solar, de intensa alegria: calças amarelas e vermelhas, camisas às flores, criança precoce de passos de dança herdados de James Brown.
É aqui que nasce o complexo de Peter Pan de Jackson: na distância entre esse mundo imaginário (esse construído) e o real.
Jackson não foi, na prática, uma criança: com cinco anos de idade era obrigado pelo pai a subir aos palcos à força de muita pancada. O pai violentou-o desde cedo, escravizou-o, ao ponto de Jackson nunca ter brincado com crianças no pátio, ou, como disse em 93 a Oprah, nunca ter tido festas de pijama.
Essa (dolorosa) entrevista não só é reveladora da tragédia que Jackson sofreu, como também demonstra o grau de "desligamento" com que o Rei da pop via a idade adulta. Referindo-se à sua infância (nove, dez anos), Jackson dizia: "Ia gravar e via as crianças a brincar no parque e chorava porque tinha de gravar dez horas por dia." Jackson revela que era alvo das agressões do pai, revela que este pai o gozava por ter acne e lhe dizia que era feio. Jackson revela ainda que já adulto e durante anos vomitava de cada vez que via o pai. E a cada revelação pede desculpa ao pai.
Nessa tremenda entrevista ele revela ainda que se identifica com o Homem-Elefante, e diz: "Adoro fazer coisas pelas crianças e imitar Jesus."
Na altura em que conversou com Oprah estava há 14 anos sem dar uma entrevista à televisão. Em 1982, na primeira entrevista que deu sem acompanhamento da família, disse ao repórter: "Se eu falo, digo o que está na minha cabeça e isso soa estranho ao ouvido das pessoas, porque eu digo tudo." O seu posterior silêncio soa a paranóia, a medo do confronto com o mundo dos adultos, em que as acções têm de ser justificadas.
1982 foi o ano em que lançou Thriller. Foi o ano em que realizou a primeira operação plástica, uma redução do nariz, e em que cortou a carapinha, numa espécie de primeiro processo de "branqueamento" do rosto. Esse caminho em direcção a uma pele, um queixo, um nariz, uma fácies branca é curioso, porque Jackson surgiu numa época em que, na música (e na Motown, a sua editora), os negros tentavam desesperadamente ser aceites pelos brancos. Pormenor: nessa entrevista de 1982 Jackson revelou a sua tristeza por o primeiro disco, Off The Wall, só lhe ter valido um Grammy, e na categoria R&B (em vez de pop).
Foi igualmente nessa altura que Jackson ganhou o hábito de, aos domingos, dançar em jejum até desfalecer. Foi igualmente nesse ano que despediu o pai da função de manager. Também nesse ano aproveitou e vendeu a mansão da família. Foi viver com a irmã Jackson para um subúrbio de LA. No jardim tinham algumas estátuas. A preferida de Jackson era uma representação de Narciso. Michael chamou à estátua Michael. Talvez tenha começado aí o seu crescendo de desequilíbrio, à medida que a sua popularidade tomou proporções nunca vistas. A fama, disse, deixava-o "triste e só". A Barbara Walters confessou que por não poder ir a um parque de diversões em paz, sem ser seguido, trouxe um para dentro de casa. Começou aí a executar um movimento de fechamento. De certo modo ficou apenas com o seu universo musical e visual. O que faz sentido, se pensarmos que nunca foi à escola (teve tutores desde cedo) e que mesmo antes de saber ler já subia aos palcos. Faz sentido, se pensarmos que nunca aprendeu a sociabilizar - mesmo entre os irmãos desde cedo era a estrela. O entertainment foi o único universo que conheceu: cantar, dançar, ser olhado e admirado. Veja-se o resultado, mais de 30 anos depois, na prestação nos Brit Awards em 1996: Jackson encena-se como Cristo, rodeado de crianças. No fim, sobe aos céus.
O que há de interessante (em termos de leitura) nessa infância perdida está no facto de toda a alegria dessa época derivar de encenação - dos concertos, das aparições na TV, etc. Quando o vemos no vídeo de Black or White rodeado de leões, russos a dançar, indianas, índios e cowboys, etc., é como se ele estivesse apenas a ampliar o universo de fantasia. Como se estivesse inundado de infância e de omnipotência, em contraste com a sua vida pessoal.
Jackson tornou-se uma espécie de presa do seu próprio imaginário, um Cristo de fantasia que sacrificou a sua sanidade mental em favor de um mundo onírico, protopuro, regressivo.
Um dia disse: "No meu coração serei sempre Peter Pan."
texto: João Bonifácio (Jornal O Público)
3 comentários:
A inocência só morre quando deixamos. Nem um exército de homens ma arrancará: Eu morrerei inocente...sei no meu coração!
Assim como tu MJ
Mesmo que a criança que ainda existe nalguns de nós se encontre assustada e agachada num canto do nosso coração! Mesmo que ninguém acredite em nós.
Love will prevail!
RIP Miky
Olá,
Achei muito interessante o teu blog,que descobri por acaso,mas que gostei e ja´adicionei oas favoritos.:) já agora faço-te o convite para visitares meu cantinho.
bjs
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