terça-feira, junho 23, 2009

O HOMEM DOS 94 MILHÕES

Quem é o homem que consegue no mesmo dia aparecer na capa de "A Bola" e do "Financial Times"?

O homem, evidentemente, é Cristiano Ronaldo, protagonista da transferência mais cara de sempre do futebol mundial. Mas a notoriedade deste caso não se esgota na soma astronómica de 94 milhões de euros, obscenamente desmultiplicada pelos media em milhares de euros por dia, hora ou minuto ou multiplicando em ouro os quilos que pesa o jogador português. Há muito mais do que isso. No meio da maior crise económica das últimas décadas, a compra de Cristiano Ronaldo pelo Real Madrid transformou-se numa questão ideológica e mesmo numa questão moral.

Nada disto no entanto é realmente novo. O mesmo discurso existiu quando Florentino Pérez, na sua primeira incursão como presidente do Real Madrid, não olhou a meios para construir uma equipa de superestrelas, baseada no pressuposto de que um clube de futebol é acima de tudo uma empresa de direitos televisivos e uma fábrica de roupa desportiva.

No plano desportivo, os críticos recordam os Galácticos como um fracasso, face aos montantes investidos. Pérez manterá a sua teoria, lembrada por Gideon Rachman no Financial Times: um clube de futebol é Hollywood e não interessa se o filme é bom, mas sim que tenha o Tom Cruise. Ou, neste caso, Cristiano Ronaldo e o brasileiro Kaká.

Então o que faz tudo isto parecer estranho e leva responsáveis do futebol e dirigentes políticos europeus a exigir regulação e a falar em imoralidade? Apenas o facto, quero crer, de estas contratações acontecerem fora do tempo, de serem portadoras de um anacronismo bizarro. No princípio da década, quando Zidane, Figo e Beckham rumaram a Madrid, a especulação financeira era a lei do dia e o futebol não ficava fora de jogo. Agora, é o resto do mundo que parece estar fora de jogo. Nos dias que correm, em que outro negócio alguém consegue dispor assim, do pé para a mão, de 300 milhões de euros para ir às compras?

Em Portugal, evidentemente, o debate é outro. As televisões despacham jornalistas para Madrid com o único fito de garantir ao povo, várias vezes por dia, que Ronaldo é o maior e o mais rico e de ir para a rua perguntar às miúdas se acham que ele é giro. O grau zero da infantilização.

Pergunto-me, por vezes, onde é que outro tipo de homens míticos, vamos chamar-lhes os homens dos 94 cêntimos, se cruzam com o homem dos 94 milhões? Quando compram uma camisola ou quando a produzem numa fábrica sombria algures no Oriente? Os milhões de Ronaldo, um grande negócio, um grande jogador, tornamse eles próprios uma ideologia esmagadora. Não, os milhões não são apenas dinheiro, são uma parte do espectáculo, porque uma parte do espectáculo da equipa mais cara do mundo é ser a equipa mais cara do mundo. Como dizia alguém, comprar Ronaldo é como comprar um Picasso, período azul. Só que o Ronaldo tem pernas de certeza e com o Picasso nunca se sabe.

O que a contratação milionária de Ronaldo prova é que, no auge da crise, quando a economia real bate no fundo, o circo continua a ser um negócio tentador, mesmo que não se saiba se vai ser rentável.

O negócio de Ronaldo é um símbolo de que a velha economia especulativa não morreu com a crise, nem há qualquer novo modelo que a substitua.

O dinheiro, portanto, continuará a ser a única regra que conta neste futebol. Quanto ao resto, esqueçam o moralismo; não me incomodam os milhões que alguém ganha, muito menos um jogador que troca um formidável clube inglês (o United) por uma espécie de Disneylandia do futebol, como alguém um dia chamou ao Real Madrid. Todos estes séculos depois dos Felipes, os espanhóis continuam a acreditar no mito da Invencível Armada.


Miguel Gaspar (Jornal Público)

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